JOSAPHAT  MARINHO  E  O  NOVO  CÓDIGO  CIVIL

 

MIGUEL   REALE

Professor emérito da Universidade de São Paulo

 

                   No dia trinta de março de 2002, perdeu o País, repentinamente, um de seus mais insígnes juristas, o Prof. Josaphat Marinho, sem cujo saber e dedicação não estaríamos agora festejando o advento de um novo Código Civil.

                   Foi em 1995 que o ilustre Presidente do Senado Federal, Antonio Carlos Magalhães, me deu ciência de que decidira retomar a tramitação do Projeto do Código Civil, paralisada há mais de dez anos, primeiro, em virtude da Assembléia Nacional Constituinte, da qual se esperavam profundas alterações no plano da vida privada, e, depois, pelas graves crises econômico-políticas que se lhe seguiram.

                   Reconstituída a Comissão Especial do Código Civil, nenhuma notícia me animou tanto como a de que Josaphat Marinho havia sido nomeado seu Relator Geral, pois a situação criada era de tal ordem que somente um jurisconsulto dotado de grandes conhecimentos científicos e de profundo senso prático estaria em condições de atualizar o Projeto aprovado em 1984 pela Câmara dos Deputados, congregando em torno dele, novamente, a comunidade jurídica nacional.

                   Nada mais justo, pois, do que enaltecer a participação decisiva do então senador Josaphat Marinho que assumiu o tão delicado encargo com plena consciência das dificuldades que iria afrontar, a começar pelo primeiro problema que tinha a resolver quanto à conveniência e necessidade de prosseguir no processo de codificação.

                   Nesse sentido, figurará entre os seus mais primorosos trabalhos o Parecer Preliminar que houve por bem elaborar, em maio de 1995, pondo em discussão a tese da “descodificação”, segundo a qual o dinamismo atual da civilização contemporânea seria infenso à idéia de sistematização unitária da legislação civil, sendo preferível recorrer a distintas e sucessivas leis especiais.

                   Invoca Josaphat, nessa ordem de idéias, argumentos de mestres nacionais e alienígenas, desde Orlando Gomes, que se tornara um desiludido da codificação, até a já clássica monografia de Natalino Irti, L'età della codificazione, publicada em 1979, para tomar corajosa posição a favor da continuidade codificadora nestes termos:

                   “ Não obstante a controversia aberta e os fatores consideráveis que nela se encerram, parece de toda conveniência que se prossiga no estudo do projeto de novo Código Civil. Depois do meritório esforço desenvolvido pelos eminentes juristas que colaboraram na feitura do Anteprojeto e da valiosa contribuição da Câmara dos Deputados, que o converteu no projeto aprovado, seria temerário mudar o rumo do processo legislativo, para reservar o caminho à edição de leis especiais. Se o código atual, provindo do saber e da experiência de Clovis Bevilaqua, e em vigor desde 1917, sofre a incidência de múltiplas leis, que a modificaram ou criaram sistema normativo diverso, já agora, é melhor tentar a inovação global do que o manter mutilado, e por isso mesmo de complicada interpretação, em prejuízo da sociedade e da ordem jurídica”.

                   Eleita essa via, o douto Relator Geral percebeu que era indispensável abrir as portas do Senado Federal à colaboração de todos os interessados na feitura do novo Código Civil, concebido como eixo ou matriz de todo o Direito Privado, e não como sua global sistematização. Por outro lado, dando prova de sua modéstia intelectual, não vacilou a tomar duas decisões: submeter as emendas oferecidas pelos senadores à apreciação dos antigos membros da “Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil”; e convidar especialistas para se pronunciarem sobre a proposta em pauta. O volume II de O Projeto de Código Civil no Senado Federal, publicado em 1988 pela Câmara Alta, mostra-nos bem a extensão da desprendida Consulta feita p0or Josaphat Marinho tanto a juristas como a entidades interessadas no assunto.

                   Para que essa colaboração tivesse sentido de concretude, o meu saudoso amigo e confrade (era ele membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas) assumiu a responsabilidade de atualizar o Projeto graças a “Emendas do Relator”, que se elevaram a 128, o que representou substancial acréscimo às oferecidas pelos membros do Senado Federal.

                   Cabe notar que grande parte dessas 128 emendas constituia participação pessoal de Josaphat Marinho no processo legislativo, sendo várias delas relativas a problemas de linguagem, área em que ele era de notória sabedoria.

                   Além disso, Josaphat emitiu parecer sobre as 366 emendas apresentadas por seus pares, ora delas discordando, ora delas partindo para oferecer subemendas, a final integradas no Projeto, por ele situado “no ocaso de um para o nascer de outro século, devendo traduzir-se em fórmulas genericas e flexíveis, em condição de resistir ao embate de novas idéias”.

                   Por aí se vê como foi decisiva a atuação do Relator Geral, cujo senso social e histórico foi essencial nessa conjuntura, valendo a pena transcrever aqui as palavras com que ele encerrou seu Parecer Final emitido a 5 de novembro de 1997, a saber:

                   “A feitura do novo Código, se é difícil e polêmica, responde a necessidades coletivas, umas de natureza espiritual, outras de ordem econômica e social. Preciso é dar à vida, no seu conjunto, instrumentos normativos atualizados. Poderão não ser perfeitos, como não o é o Projeto, mas representarão uma nova sistematização de normas reguladoras de fenômenos e relações que mudaram e estão em transformação.”

                   Se Josaphat Marinho não tivesse esse espírito prático e experiencial, é bem possível que o Projeto de novo Código Civil ainda permanecesse sem solução no seio do Senado Federal, perdendo-se o fruto de longos e valiosos estudos por parte da Câmara dos Deputados e de grande número de juristas do País.

 

                   Isto exposto, ainda que de maneira sucinta, é justo concluir afirmando que o nome de Josaphat Marinho deve figurar entre os dos maiores artífices da nova codificação civil.